- Encerrando os estudos do Ensaio sobre a Dádiva, mergulhamos finalmente na Conclusão da obra. A primeira observação pertinente é que Marcel Mauss não estabelece apenas uma, mas várias conclusões. A primeira é a "moral". Há aqui mais uma vez a lembrança do autor da proposta de estudo de seu próprio mundo. Estuda a si mesmo a partir da recuperação de uma lógica, na opinião do autor, ainda presente nas sociedades contemporâneas. Importante relembrar a participação social ativa do francês em busca da transformação da realidade. Chegou a lutar na Grande Guerra quando tinha 40 anos, idade avançada para a batalha. Demonstra ainda, uma vez mais, o equilíbrio de sua teoria. Teoria elaborada a partir de pesquisas extensas, consultas a etnografias e, claro, observação da sociedade ao seu redor. Preocupa-se em evidenciar sempre que seu trabalho é um mero esboço, "ensaio", que não pretende encerrar conclusões pétreas acerca da realidade. Porém, ao mesmo tempo, expondo conclusões bem fundamentadas em uma teoria demasiadamente convincente.
- Conceito aqui já abordado e relembrado por Mauss em suas conclusões é o de "atmosfera de dádiva". Como já discutimos, para que a dádiva ocorra deve haver uma espécie de "clima" propício para tal. Clima esse que é ao mesmo tempo impulsionado por ela. Pois de acordo com o autor, a atmosfera de dádiva ainda se encontra presente nas sociedades contemporâneas. É por isso que se faz necessário resgatar a lógica. É por isso que a ideia lhe parece possível, não distante ou sonhadora. Para exemplificar, Mauss argumenta que a previdência social seria uma espécie de "socialismo do estado". Seria uma espécie de auxílio e proteção dados pelo Estado aos seus cidadãos já "incapacitados" para o trabalho. Obviamente que o francês não ignora que essa dádiva foi reivindicada pelos movimentos sociais. Que se trata de uma conquista, e não de um presente generoso e altruísta. Porém ele enxerga, além das especificidades características, a permanência da lógica da dádiva. A previdência social seria uma retribuição dos serviços oferecidos, não um simples pagamento seguindo somente a lógica do capital. Não seria idealizar a previdência, no entanto? Não precisamos ainda contribuir, para não sofrer até sanções legais? Sim, mas essas questões práticas demandam resposta análoga. De onde viria o dinheiro do auxílio se não houvesse a contribuição? A questão proposta por Marcel Mauss é a de destaque da lógica, em um sentido geral. Não se trata de enxergar a previdência como uma ação de caridade generosa em suas especificidades. A administração e a legislação da mesma são outra coisa. O importante para Mauss é compreender a lógica de dádiva residente em sua concepção, em sua ideia "original".
- Falando de caridade, levantamos assunto importante. É fácil perceber o quanto a dádiva não retribuída ainda inferioriza aquele que a aceitou. Se o ato de caridade, por exemplo, não envolver uma espécie de sistema de retribuição, o donatário irá sentir-se inferior, "submetido" moralmente. E não é só nesse exemplo que o autor aponta a permanência da lógica. Ela se faz presente também na resistência que ainda se tem ao trabalho do comerciante. Para sobreviver na lógica capitalista, ele necessita obter lucro. Isso implica vender suas mercadorias sempre em um preço mais alto em relação ao que pagou. Se estivéssemos completamente imersos na lógica capitalista, esse pensamento seria perfeitamente normal, aceitável. No entanto, Mauss observa que ainda há um certo estranhamento à tal prática, de tal forma que se o consumidor descobrir o preço "original" do produto, enfurece-se com o mercador. Sente-se enganado.
- Assim, Marcel Mauss propõe que regressemos aos costumes da "despesa nobre". Sempre que havia alguma festa ou evento público em Atenas, os mais ricos eram obrigados a arcar com os custos. Caso algum deles recusasse, e alguém denunciasse, todas as posses do rico em questão iriam para o denunciante. A "moral" do ato era simples. Como você enriqueceu? Não foi utilizando os recursos da sociedade em que vive? Pois então, nada mais justo do que retribuir essa dádiva. Não se enganem, trata-se aqui de muito mais do que um "ódio de classe". Trata-se de receber algo e ter a grandeza de retribuí-lo. Mauss denuncia assim, ainda uma vez mais, a lógica capitalista. Da mesma forma que denuncia os ideais comunistas. De acordo com ele, generosidade excessiva do Estado sem o trabalho do indivíduo também não serviria. Haveria a tal da inferiorização do cidadão, que seria assim submetido, subjugado com facilidade. É preciso encontrar o meio-termo.
- Marcel Mauss propõe assim uma verdadeira religião da humanidade. Não se preocupa em apenas descrever a dádiva, mas sim demonstrar seus resultados, imediatos ou não. Pede que a sociedade adote o princípio moral da dádiva-troca. Sair de si. Dar, livre e obrigatoriamente. Suas noções, reforçamos, tem uso livre, como o próprio autor ressaltou. Nada de definições frias. A definição intenta matar as contradições. A diferença de Mauss? Ele assume que essas contradições possam existir. Afinal, o estudo não é sobre seres humanos?...
Referências Bibliográficas
MAUSS, Marcel. "Ensaio sobre a dádiva. Forma e razão da troca nas sociedades arcaicas." In: Sociologia e Antropologia. São Paulo: EPU/EDUSP. 1974
Douglas Coutinho - Cook Multimídia
quinta-feira, 25 de setembro de 2014
sábado, 20 de setembro de 2014
Resumo da Aula 11: "Ensaio sobre a dádiva - sessão V" (09/09)
- Conectando-se à fagulha, iniciamos as conversações debatendo A Dominação Masculina, livro do famoso sociólogo Pierre Bourdieu. Explica o autor que a dominação de gênero está tão ancorada em nós que temos dificuldade mesmo em percebê-la. Relações de dominação, estabelecidas no processo histórico, têm essa tendência de interiorizar-se nos indivíduos, que passam a vê-la como algo "natural". Cria-se um "habitus", para utilizar o conceito do autor francês. Conscientizar é válido e preciso, mas seria a solução final para tal problema social? Como Mauss demonstra em sua crítica, devemos nos distanciar dessa lógica que define o ser humano como objeto, mercadoria. As possibilidades de troca, de relação humana sob a lógica da dádiva, encontram-se assim diminuídas, embora ainda resistentes. A violência contra a mulher, seja ela simbólica ou física, tem como uma de suas fontes essa perda do aspecto humano nas sociedades. Os preconceitos de gênero são naturalizados pois observados desde o "berço". O futebol, por exemplo, é imediatamente visto como um esporte para homens. Se uma menina desejar jogar com os amigos na escola, será tratada de forma diferente. Seus próprios colegas resistirão à ideia de aceitá-la na brincadeira, quando não respondendo com violência durante a partida. Sem contar que às meninas não é dada a chance de praticarem o esporte desde cedo. Os meninos aprendem a andar e correr já com o "obstáculo" da bola incorporado ao seu equilíbrio. Se torna assim bem mais dificultoso para as meninas adaptarem-se ao jogo, não acostumadas aos movimentos "naturais" do mesmo. Reproduz-se assim o velho e estúpido lema de que "futebol é coisa de homem"(Sugestão de leitura 06). A mudança deve vir então através do exemplo, na experiência prática. Vai além do conscientizar, uma vez que ultrapassa o mundo das palavras.
- Dentro dessa impessoalidade desalentadora existem bolsões, claro, como bem tentamos demonstrar aqui nestes textos modestos. Mas o que importa na análise é o processo histórico em si, o sistema como um todo. É isso que deve ser questionado. Quando lemos em pesquisas o triste fato de que muitos professores adoecem graças aos estresses de sua profissão, faz-se necessário questionar esse sistema no qual estamos inseridos. É preciso ir além das experiências individuais. Não se pode tomar casos de exceção como refutação à "regra" bem observada.
- Seria Mauss um romântico? A questão deve ser bem explicitada e refletida. Mauss buscava soluções concretas para uma problemática observada nas sociedades a ele contemporâneas. A solução, obviamente, está impregnada de seus ideais políticos, quais sejam, socialistas. Mas será que propor soluções denotaria romantismo? Não seríamos então todos aqueles que não são "neutros", românticos? O francês demonstra, sim, que sem dádiva não há sentido de viver, não há funcionamento social. Deve-se haver o estabelecimento de vínculo de almas, ou então o "fim" seria triste, quando não próximo. Logo, ele sonhava sim em relação à transformação da realidade, isso é fato. Entretanto, ele demonstra um caminho possível. Concorde com ele ou não, isso é livre, porém não há como negar sua pesquisa valiosa. O autor busca exemplos para validar sua teoria, que não é fechada, por sinal. Sem contar que o próprio afirma que nas diversas sociedades coexistem número variado de lógicas diferentes. A grande questão é: qual delas predomina?
- Dentro dessa impessoalidade desalentadora existem bolsões, claro, como bem tentamos demonstrar aqui nestes textos modestos. Mas o que importa na análise é o processo histórico em si, o sistema como um todo. É isso que deve ser questionado. Quando lemos em pesquisas o triste fato de que muitos professores adoecem graças aos estresses de sua profissão, faz-se necessário questionar esse sistema no qual estamos inseridos. É preciso ir além das experiências individuais. Não se pode tomar casos de exceção como refutação à "regra" bem observada.
- Seria Mauss um romântico? A questão deve ser bem explicitada e refletida. Mauss buscava soluções concretas para uma problemática observada nas sociedades a ele contemporâneas. A solução, obviamente, está impregnada de seus ideais políticos, quais sejam, socialistas. Mas será que propor soluções denotaria romantismo? Não seríamos então todos aqueles que não são "neutros", românticos? O francês demonstra, sim, que sem dádiva não há sentido de viver, não há funcionamento social. Deve-se haver o estabelecimento de vínculo de almas, ou então o "fim" seria triste, quando não próximo. Logo, ele sonhava sim em relação à transformação da realidade, isso é fato. Entretanto, ele demonstra um caminho possível. Concorde com ele ou não, isso é livre, porém não há como negar sua pesquisa valiosa. O autor busca exemplos para validar sua teoria, que não é fechada, por sinal. Sem contar que o próprio afirma que nas diversas sociedades coexistem número variado de lógicas diferentes. A grande questão é: qual delas predomina?
Referências Bibliográficas
MAUSS, Marcel. "Ensaio sobre a dádiva. Forma e razão da troca nas sociedades arcaicas."
MAUSS, Marcel. "Ensaio sobre a dádiva. Forma e razão da troca nas sociedades arcaicas."
In: Sociologia e Antropologia. São Paulo: EPU/EDUSP. 1974.
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quarta-feira, 17 de setembro de 2014
Resumo da Aula 10: "Ensaio sobre a dádiva - sessão IV" (04/09)
- Prosseguimos em nosso estudo do Ensaio sobre a dádiva retomando o debate a partir de palavras-chave. Era necessário ainda discutir alguns conceitos. O que entender por "oferendas contratuais", por exemplo? Cabe aqui citar um livro de Natalie Zemon Davis, intitulado The Gift in Sixteenth-Century France (Sugestão de leitura 05). Referimos-nos à descrição que a autora realiza dos hábitos relacionados ao pedido de namoro na sociedade francesa do XVI. Comenta ela que antes de iniciar qualquer "relacionamento", o pretendente deveria estabelecer diversos contratos de dádiva com a família da moça. A família seria representada pela sua "pessoa moral" (o pai), que poderia aceitar ou recusar o presente ofertado. Recusar o gesto é sinônimo de recusa de uma aliança. Caso aceitasse, retribuiria concedendo "a mão" de sua filha. Há aqui belo exemplar de oferenda contratual. É algo que se oferta na intenção de firmar um vínculo, ou reafirmar o contrato.
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- Outros termos demonstraram-se igualmente importantes para o estudo. "Circulação obrigatória" é um deles, conceito que será reapropriado mais tarde por Claude Lévi-Strauss. Há aqui intrínseca a lógica de comunicação entre grupos, em oposição à guerra. Lévi-Strauss analisa tal fato a partir do "tabu do incesto". Os grupos humanos começam a relacionar-se firmando alianças, através da troca de mulheres. O ato garantia a sobrevivência daqueles grupos, não só por evitarem a guerra como única reação ao contato, mas também por garantirem importante laço que poderia ser útil em épocas de carência de alimentos. Inicia-se assim, através da circulação obrigatória para a manutenção do laço, as relações de troca que seriam a rocha fundamental (conceito utilizado por Mauss, não Lévi-Strauss) sob a qual as sociedades erigiram-se. Aqui neste exemplo, a circulação seria de mulheres.
- Encerrando a dinâmica das palavras-chave, dois termos fizeram-se presentes: "propriedade-talismã" e "sistema de sacrifício". A propriedade-talismã refere-se ao objeto carregado de "mana", de energia superior. Trata-se de algo especial, diferenciado. Os presentes recebidos no "kula", estudado por Malinowski, eram carregados desse mana. Tratavam-se então de propriedades-talismã, exibidos com orgulho pelos chefes dos grupos. O sistema da "moda" atual é baseado neste conceito. Assim que todos passam a ter condições de adquirem aquela peça "especial", diferenciada, ela sai de "moda". Busca-se então outra propriedade-talismã para substituí-la no posto de "sonho de consumo". A comparação é, claro, superficial. Serve para propósitos didáticos mais diretos, no entanto. Quanto ao sacrifício, observamos com mais clareza ainda. Não precisamos ir tão longe, e citar aqui os pagamentos de promessa aos santos diversos. Acender uma vela em homenagem ao mesmo já denota o sacrifício. Sacrifico algo, dou, para receber em troca. Ou então estou sacrificando para retribuir o que acredito ter recebido. No exemplo da vela, sacrifico o material da mesma, a parafina, os palitos de fósforo utilizados para acendê-la...
- O sistema das dádivas é, em suma, demasiadamente extenso. Pode ser analisado sob diversas óticas, e a proposta de trabalho da Unidade deixou isso claro. As regras de generosidade que o regem podem ser encontradas em várias das sociedades "primitivas" ou "arcaicas" estudadas.. E ainda podem ser encontradas em nossa sociedade atual. A divisão, ou melhor, o compartilhamento de gestos de carinho e afeição nas relações de amizade o demonstra bem. Há dádiva quando não há interesse no "uso" da pessoa. Quando o ser humano deixa de ser visto pelo outro como peça de impulsão para que ele alcance algo. Quando o gesto de generosidade alimenta-se em si, e traz como retribuição as relações de carinho mútuo tão procuradas...
- Encerrando a dinâmica das palavras-chave, dois termos fizeram-se presentes: "propriedade-talismã" e "sistema de sacrifício". A propriedade-talismã refere-se ao objeto carregado de "mana", de energia superior. Trata-se de algo especial, diferenciado. Os presentes recebidos no "kula", estudado por Malinowski, eram carregados desse mana. Tratavam-se então de propriedades-talismã, exibidos com orgulho pelos chefes dos grupos. O sistema da "moda" atual é baseado neste conceito. Assim que todos passam a ter condições de adquirem aquela peça "especial", diferenciada, ela sai de "moda". Busca-se então outra propriedade-talismã para substituí-la no posto de "sonho de consumo". A comparação é, claro, superficial. Serve para propósitos didáticos mais diretos, no entanto. Quanto ao sacrifício, observamos com mais clareza ainda. Não precisamos ir tão longe, e citar aqui os pagamentos de promessa aos santos diversos. Acender uma vela em homenagem ao mesmo já denota o sacrifício. Sacrifico algo, dou, para receber em troca. Ou então estou sacrificando para retribuir o que acredito ter recebido. No exemplo da vela, sacrifico o material da mesma, a parafina, os palitos de fósforo utilizados para acendê-la...
- O sistema das dádivas é, em suma, demasiadamente extenso. Pode ser analisado sob diversas óticas, e a proposta de trabalho da Unidade deixou isso claro. As regras de generosidade que o regem podem ser encontradas em várias das sociedades "primitivas" ou "arcaicas" estudadas.. E ainda podem ser encontradas em nossa sociedade atual. A divisão, ou melhor, o compartilhamento de gestos de carinho e afeição nas relações de amizade o demonstra bem. Há dádiva quando não há interesse no "uso" da pessoa. Quando o ser humano deixa de ser visto pelo outro como peça de impulsão para que ele alcance algo. Quando o gesto de generosidade alimenta-se em si, e traz como retribuição as relações de carinho mútuo tão procuradas...
Referências Bibliográficas
MAUSS, Marcel. "Ensaio sobre a dádiva. Forma e razão da troca nas sociedades arcaicas." In: Sociologia e Antropologia. São Paulo: EPU/EDUSP. 1974
Sugestão de leitura 05
DAVIS, Natalie Zemon. The Gift in Sixteenth-Century France. Winsconsin: UW Press. 2000
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quinta-feira, 11 de setembro de 2014
Resumo da Aula 9: "Ensaio sobre a dádiva - sessão III" (02/09)
- Após um breve rearranjo de nosso calendário, retomamos a discussão em relação ao Ensaio. Como visto na última aula, há uma quantidade enorme de conteúdo a ser abordado. Embora tenhamos debatido diversos conceitos importantes, ainda se fazia necessário retornar à Introdução e ao Capítulo 1. Devemos ressaltar que Marcel Mauss realiza em sua obra uma investigação minuciosa sobre a noção de contrato em uma lógica "pré-capitalista". Quer dizer: um estudo sobre a natureza das relações firmadas, dos acordos pessoais, fora dos interesses meramente financeiros. Determina então um duplo objetivo a ser alcançado, uma "dupla meta". Primeiramente realizar um trabalho descritivo para chegar a "conclusões arqueológicas" sobre o tema estudado. Executa assim quase que um trabalho de História do Direito. Bom, pelo menos um "ensaio" referente ao tema... E com isso, encontramos o segundo objetivo, esse o mais importante. Deseja demonstrar, através de suas conclusões, a permanência da lógica da dádiva nas sociedades atuais. O autor realiza, orquestradamente, um movimento metodológico nesse sentido. Recua no tempo, ou desloca-se no espaço, para buscar nas sociedades "primitivas" seus pontos de sustentação. Qual seria a rocha sob a qual estariam erigidas tais sociedades? O que as mantinha em pleno funcionamento? Segundo o francês, a resposta reside nas relações humanas firmadas e baseadas na generosidade. Na troca, na dádiva...
- Como já estabelecemos que o objetivo de Mauss era estudar as sociedades contemporâneas, qual seria então o problema das mesmas? Onde estaria a razão de tantas guerras, desigualdades e tormentos? O problema, na ótica do autor, estava na falta de reconhecimento do ser humano. Na falta de dádiva, por assim dizer. A crise reside em achar que se vive pondo a mercadoria no centro de importância. O que importa é o ser humano, são as relações humanas. Poderíamos dizer, inclusive, que "rocha humana" seria um belo conceito-chave... Não seria Marcel Mauss um evolucionista, utilizando termos como "primitivos(as)" em seu trabalho? É óbvio que ele possui influências claras, especialmente considerando a época em que escrevia. Entretanto, há uma diferença evidente. Os autores evolucionistas reuniam dados etnográficos produzidos por qualquer um, desde que pudessem adequá-los a seus conceitos de "barbárie", "selvageria"... Mauss nunca misturou dados. Estudava uma sociedade por vez, revelando especificidades e permanências. É o método da comparação precisa. O autor estuda o sistema social. Os elementos não são assim comparados de forma solta, isolada. São interpretados como parte de um sistema maior. Um exemplo para estudar um sistema social com seriedade e um mínimo de eficiência o próprio antropólogo realiza. Busca acessar as consciências, através do estudo da língua. Intenta compreender assim as significações, as interpretações desse sistema social.
- A importância desse método de estudo do sistema demonstra-se em uma análise bastante atual. Referimo-nos ao pensamento de alguns religiosos em sua cruzada contra a homossexualidade. A prática homossexual atinge um fundamento do sistema de pensamentos atrelados à sua crença, sua religião. Pelo menos é assim que ele o pensa. E quando se atinge uma parte integrante, fundamental de um sistema, abala-o inteiro, enfraquece-o nas bases. A resposta reacionária é a violência, física ou simbólica. Busca-se defender a qualquer custo aquela estrutura já construída, para evitar seu desmoronamento completo. Após essa reflexão, concluimos o estudo do dia pensando a importância da retribuição na relação feita sob a dádiva. É a retribuição que "fecha" o sistema, o contrato estabelecido no ato de dar. É ela a responsável por diferenciar esse tipo de troca de um simples escambo. É ela quem cristaliza o estabelecimento do vínculo pessoal. Como o exemplo do traficante que em épocas especiais distribuía dinheiro e presentes aos moradores da favela em que "labutava". Havia ali a retribuição pelo uso do território, pela perturbação da paz. Utilizando a etnografia de Malinowski (Sugestão de leitura 04), Mauss aplica a teoria, algo que o polonês não tinha. A atualidade da mesma demonstra-se, a cada estudo, de forma salutar.
Referências Bibliográficas
MAUSS, Marcel. "Ensaio sobre a dádiva. Forma e razão da troca nas sociedades arcaicas." In: Sociologia e Antropologia. São Paulo: EPU/EDUSP. 1974
- Como já estabelecemos que o objetivo de Mauss era estudar as sociedades contemporâneas, qual seria então o problema das mesmas? Onde estaria a razão de tantas guerras, desigualdades e tormentos? O problema, na ótica do autor, estava na falta de reconhecimento do ser humano. Na falta de dádiva, por assim dizer. A crise reside em achar que se vive pondo a mercadoria no centro de importância. O que importa é o ser humano, são as relações humanas. Poderíamos dizer, inclusive, que "rocha humana" seria um belo conceito-chave... Não seria Marcel Mauss um evolucionista, utilizando termos como "primitivos(as)" em seu trabalho? É óbvio que ele possui influências claras, especialmente considerando a época em que escrevia. Entretanto, há uma diferença evidente. Os autores evolucionistas reuniam dados etnográficos produzidos por qualquer um, desde que pudessem adequá-los a seus conceitos de "barbárie", "selvageria"... Mauss nunca misturou dados. Estudava uma sociedade por vez, revelando especificidades e permanências. É o método da comparação precisa. O autor estuda o sistema social. Os elementos não são assim comparados de forma solta, isolada. São interpretados como parte de um sistema maior. Um exemplo para estudar um sistema social com seriedade e um mínimo de eficiência o próprio antropólogo realiza. Busca acessar as consciências, através do estudo da língua. Intenta compreender assim as significações, as interpretações desse sistema social.
- A importância desse método de estudo do sistema demonstra-se em uma análise bastante atual. Referimo-nos ao pensamento de alguns religiosos em sua cruzada contra a homossexualidade. A prática homossexual atinge um fundamento do sistema de pensamentos atrelados à sua crença, sua religião. Pelo menos é assim que ele o pensa. E quando se atinge uma parte integrante, fundamental de um sistema, abala-o inteiro, enfraquece-o nas bases. A resposta reacionária é a violência, física ou simbólica. Busca-se defender a qualquer custo aquela estrutura já construída, para evitar seu desmoronamento completo. Após essa reflexão, concluimos o estudo do dia pensando a importância da retribuição na relação feita sob a dádiva. É a retribuição que "fecha" o sistema, o contrato estabelecido no ato de dar. É ela a responsável por diferenciar esse tipo de troca de um simples escambo. É ela quem cristaliza o estabelecimento do vínculo pessoal. Como o exemplo do traficante que em épocas especiais distribuía dinheiro e presentes aos moradores da favela em que "labutava". Havia ali a retribuição pelo uso do território, pela perturbação da paz. Utilizando a etnografia de Malinowski (Sugestão de leitura 04), Mauss aplica a teoria, algo que o polonês não tinha. A atualidade da mesma demonstra-se, a cada estudo, de forma salutar.
Referências Bibliográficas
MAUSS, Marcel. "Ensaio sobre a dádiva. Forma e razão da troca nas sociedades arcaicas." In: Sociologia e Antropologia. São Paulo: EPU/EDUSP. 1974
Sugestão de leitura 04
MALINOWSKI, Bronislaw. Argonautas do Pacífico Ocidental. São Paulo: Editora Abril. Coleção Os Pensadores. 1978.
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Avisos a pedido do ex-professor Marcos Alvito
Kaliméra, bom dia a tod:-)s,
O velho lobo do mar pediu licença para utilizar esta multimidia para dar alguns avisos:
1. O fabuloso folhetim eletrônico As Aventuras da Dra. Eu Ka Liptus, uma PhDeusa afro-calipígia, passou a ser publicado, diariamente, em https://uff.academia.edu/MarcosAlvito ; a história de hoje, 11 de setembro, não é esse o nome da história, a historieta de hoje chama-se "A Pós-Chateação". Então, é só clicar: https://uff.academia.edu/MarcosAlvito
2. Uma outra série, esta mais antiga e bota história antiga nisso, continua onde sempre esteve, não sendo agora recopiada no Foicebuk. Quem quiser conhecer ou continuar a ler as histórias dos primos de Al Tivo, é só apontar o dedinho para: http://www.autobiografiadosmeusprimos.blogspot.com.br/
3. Por fim, é sempre bom lembrar que Al Tivo não saiu de dentro do FoiceBuk, ele está tentando tirar o FoiceBuk de dentro dele isto sim, esta terra de cortadores de cabeça sem coragem, esta arena sanguinária sem sangue e sem alma. O jagunço véio, marujo aprendiz e outras milongas mais continua vivo (oferta dos deuses por tempo limitado), apreciando o céu azul, batendo mal o seu pandeiro e disposto a conversar com seus amigxs mano a mano, oio no oio ou então pelo emílio de sempre: marcosalvito@gmail.com
Bora Bora é isso aí,
um forte abraço de um fraco, sem braço mas ainda com um tiquinho de alma,
Marcos
P.S: Foto do craque Thiago Castro de Souza, para variar, obrigado, marujo!
segunda-feira, 8 de setembro de 2014
Resumo da Aula 8: "Ensaio sobre a dádiva - sessão II" (28/08)
- Com a proposta de dissecar a Introdução e o Capítulo 1 de O Ensaio sobre a Dádiva, nos foi sugerida a dinâmica de escolha de palavras-chave. As palavras selecionadas poderiam ser conceitos ou não. O conceito poderia ser definido como uma formulação, ou organização, de uma ideia através de palavras. Todo conceito é, assim, uma palavra-chave. Começando com a Introdução, a aluna Ana Luisa Duarte escolheu "fenômeno social total". Ora, analisando o próprio termo, chega-se a algumas inferências. Para que um fenômeno social seja total, ele deve abarcar todos os aspectos da sociedade. Tivemos há pouco um exemplo claro de fenômeno assim: a Copa do Mundo. Trata-se de um evento que envolve todos os níveis sociais. Não é simplesmente esportivo, futebolístico. Com a Copa, levantaram-se questões de cunho político e econômico, por exemplo. Além do impacto cultural, difícil não enxergar os abalos diversos de natureza social. Não nos esqueçamos de que até regras de comportamento "universais" foram impostas nos estádios. A Copa é assim um exemplo claro desse fenômeno total. Mas o que isso tem a ver com a obra de Marcel Mauss? Para explicar, faremos a ligação com a palavra escolhida pelo Ian Barbosa, "prestações totais". São essas as trocas - sob a lógica da dádiva - que envolvem todos os níveis da sociedade. Um sistema de prestações totais indica uma relação de troca entre dois grupos aliados presente em diversos níveis sociais. Essa troca pode ser entre mulheres, formando alianças através do casamento. Da mesma forma que poderia se dar entre guerreiros (nível militar) ou até entre líderes (nível político).
- A palavra escolhida por Felipe Besada, "potlach", demonstra um outro tipo de prestações totais. São aquelas de tipo agonístico. "Agon" vem do grego, e traz em sim uma ideia de competição, desafio, disputa. Importante ressaltar que não há necessariamente uma natureza violenta nessa disputa. O objetivo é vencer, ser melhor, e não derrotar, destruir o adversário. Esse tipo de relação se dava entre dois grupos através de uma pessoa moral, um líder, que representa os seus. Esses líderes competiam entre si à base da dádiva. Realizavam trocas diversas na intenção de demonstrar poder, superioridade. As trocas se tornavam assim uma verdadeira disputa, mesmo que fossem sobre quem presenteia melhor. Esse é o potlach.
- Quanto ao Capítulo 1, válido mencionar a seleção do Pablo e da Pâmela. O primeiro ressaltou a ideia de "hau", importantíssima para o entendimento da obra. Para entender, pensemos em uma situação clara. Alguém que amo ou tenho grande afeição falece e me deixa um objeto seu como presente, ou herança. Não importa qual seja aquele objeto, ou quão comum ele seja. Para mim, terá valor inestimável, superior a qualquer outro que lhe seja parecido. Mesmo que seja uma simples caneta velha, de baixo custo comercial. Aquele presente carrega em si uma memória, um significado, uma essência enfim. Isso seria o "hau". Essa capacidade de carregar ou simbolizar alguém através de um presente. Nas sociedades "primitivas", Mauss observa o "hau" como parte da obrigação de retribuir. Tudo que é dado, sob a lógica da dádiva, carrega em si parte da pessoa que deu. Caso não retribuído o gesto, fica-se amaldiçoado, uma vez que retendo parte do espírito do doador. Curioso perceber como o autor se utiliza dessa explicação nativa para ir além. Demonstra que o importante não é simplesmente entender esse aspecto místico da justificação. Faz-se preciso ir além, e entender que a base das relações humanas aí se encontra, nessa obrigação "moral" de retribuir o ato de generosidade.
- Pois finalizamos com "vínculo de almas", escolhida pela Pâmela. Entendendo o conceito de "hau", percebe-se com facilidade como esse termo se encaixa. Quando há a troca sob a dádiva, firma-se um contrato, um vínculo entre almas. Importante esclarecer alguns aspectos. O autor demonstra a diferença entre o que seriam as chamadas sociedades "primitivas", "arcaicas" e as atuais, que chamaremos de "capitalistas". Nas "primitivas" não há separação entre coisas e pessoas. Estão interligados diretamente, e com o "hau" um objeto quase que se torna um indivíduo de fato. Nas "arcaicas", caracterizadas pela presença da moeda, ainda há relação entre pessoas e coisas. Em Atenas, por exemplo, somente cidadãos da pólis poderiam comprar alguns pedaços de terra. Já as sociedades "capitalistas" caracterizam-se por uma separação total de pessoas e coisas. O que importa é o dinheiro, a moeda. Se o possui, irá adquirir o que deseja. A troca sob a lógica da dádiva, nas sociedades "primitivas", constrói assim um vínculo de almas. Pressupõe a formação desse vínculo para acontecer. Importante concluir, no entanto, que essas relações de troca não se opõem necessariamente às do tipo comercial. Interpenetram-se com frequência, de modo que ainda temos condições de observar exemplos contemporâneos da mesma. Como já dito aqui, um mero papel de bala pode ter imenso significado para um casal, e ser presente de grande valia sentimental. Basta que carregue em si a memória de um momento feliz...
- Importante adendo: para que haja vínculo de almas, é necessário que o significado dos presentes seja culturalmente análogo. Logo, não há vínculo de almas nas primeiras trocas entre indígenas e europeus, por favor...
Referências Bibliográficas
MAUSS, Marcel. "Ensaio sobre a dádiva. Forma e razão da troca nas sociedades arcaicas." In: Sociologia e Antropologia. São Paulo: EPU/EDUSP. 1974.
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- A palavra escolhida por Felipe Besada, "potlach", demonstra um outro tipo de prestações totais. São aquelas de tipo agonístico. "Agon" vem do grego, e traz em sim uma ideia de competição, desafio, disputa. Importante ressaltar que não há necessariamente uma natureza violenta nessa disputa. O objetivo é vencer, ser melhor, e não derrotar, destruir o adversário. Esse tipo de relação se dava entre dois grupos através de uma pessoa moral, um líder, que representa os seus. Esses líderes competiam entre si à base da dádiva. Realizavam trocas diversas na intenção de demonstrar poder, superioridade. As trocas se tornavam assim uma verdadeira disputa, mesmo que fossem sobre quem presenteia melhor. Esse é o potlach.
- Quanto ao Capítulo 1, válido mencionar a seleção do Pablo e da Pâmela. O primeiro ressaltou a ideia de "hau", importantíssima para o entendimento da obra. Para entender, pensemos em uma situação clara. Alguém que amo ou tenho grande afeição falece e me deixa um objeto seu como presente, ou herança. Não importa qual seja aquele objeto, ou quão comum ele seja. Para mim, terá valor inestimável, superior a qualquer outro que lhe seja parecido. Mesmo que seja uma simples caneta velha, de baixo custo comercial. Aquele presente carrega em si uma memória, um significado, uma essência enfim. Isso seria o "hau". Essa capacidade de carregar ou simbolizar alguém através de um presente. Nas sociedades "primitivas", Mauss observa o "hau" como parte da obrigação de retribuir. Tudo que é dado, sob a lógica da dádiva, carrega em si parte da pessoa que deu. Caso não retribuído o gesto, fica-se amaldiçoado, uma vez que retendo parte do espírito do doador. Curioso perceber como o autor se utiliza dessa explicação nativa para ir além. Demonstra que o importante não é simplesmente entender esse aspecto místico da justificação. Faz-se preciso ir além, e entender que a base das relações humanas aí se encontra, nessa obrigação "moral" de retribuir o ato de generosidade.
- Pois finalizamos com "vínculo de almas", escolhida pela Pâmela. Entendendo o conceito de "hau", percebe-se com facilidade como esse termo se encaixa. Quando há a troca sob a dádiva, firma-se um contrato, um vínculo entre almas. Importante esclarecer alguns aspectos. O autor demonstra a diferença entre o que seriam as chamadas sociedades "primitivas", "arcaicas" e as atuais, que chamaremos de "capitalistas". Nas "primitivas" não há separação entre coisas e pessoas. Estão interligados diretamente, e com o "hau" um objeto quase que se torna um indivíduo de fato. Nas "arcaicas", caracterizadas pela presença da moeda, ainda há relação entre pessoas e coisas. Em Atenas, por exemplo, somente cidadãos da pólis poderiam comprar alguns pedaços de terra. Já as sociedades "capitalistas" caracterizam-se por uma separação total de pessoas e coisas. O que importa é o dinheiro, a moeda. Se o possui, irá adquirir o que deseja. A troca sob a lógica da dádiva, nas sociedades "primitivas", constrói assim um vínculo de almas. Pressupõe a formação desse vínculo para acontecer. Importante concluir, no entanto, que essas relações de troca não se opõem necessariamente às do tipo comercial. Interpenetram-se com frequência, de modo que ainda temos condições de observar exemplos contemporâneos da mesma. Como já dito aqui, um mero papel de bala pode ter imenso significado para um casal, e ser presente de grande valia sentimental. Basta que carregue em si a memória de um momento feliz...
- Importante adendo: para que haja vínculo de almas, é necessário que o significado dos presentes seja culturalmente análogo. Logo, não há vínculo de almas nas primeiras trocas entre indígenas e europeus, por favor...
Referências Bibliográficas
MAUSS, Marcel. "Ensaio sobre a dádiva. Forma e razão da troca nas sociedades arcaicas." In: Sociologia e Antropologia. São Paulo: EPU/EDUSP. 1974.
Douglas Coutinho - Cook Multimídia
quarta-feira, 3 de setembro de 2014
Resumo da Aula 7: "Ensaio sobre a dádiva - sessão I" (26/08)
- Os trabalhos se iniciaram com um breve retorno à análise do título da obra. Já compreendemos em outra ocasião as razões do termo Ensaio. Mas o que podemos compreender como Dádiva? O conceito carrega em sim três forças interdependentes, estágios intrínsecos à lógica. Para que haja "dádiva", deve-se observar a entrega, o recebimento e a retribuição. A troca realizada sob essa lógica é sempre carregada de significado, pois a dádiva refere-se ao estabelecimento de um vínculo. Sob esse prisma, compreende-se que o aspecto material não é protagonista nessa relação. Importa a conexão que se estabelece, fundamental para a construção de qualquer sociedade. Impossível não perceber as influências pessoais de Marcel Mauss na análise da questão. O autor escreve esse ensaio quatro anos após o fim da Grande Guerra. Período em que se encontrava sem parceiros, uma vez que muitos de seus companheiros da escola sociológica francesa haviam perecido. Durkheim, seu tio, morrera pouco depois. Assim como no samba, em que diversos compositores tem seus parceiros de confiança com o qual sempre contam, Marcel Mauss também os tinha, e de repente se viu "sozinho".
- Desta forma, Mauss busca o estudo de sociedades que ainda não possuem moeda para construir sua crítica à sociedade em que vive. E em meio a esse estudo, uma questão salta à percepção do observador francês. O que te faz retribuir o presente, a dádiva, o gesto? Foi dado mais um exemplo de Acari, que auxiliou bastante a pensar a questão. Quando um certo professor se oferece para pagar uma rodada de cervejas no bar, a turma comemora mas faz um alerta. Fulaninho de Souza, que lá estava, não tinha o costume de pagar nada pra ninguém, e jamais retribuiria o gesto. O curioso não é a gozação dos amigos, mas sim a reação de Fulaninho. Irritado e preocupado, o rapaz fazia questão de oferecer uma cerveja ao professor toda vez que o via por Acari. Preocupava-se com sua reputação, não poderia ser marcado como ingrato. A retribuição se demonstra, assim, como obrigatória, até os dias atuais. Assim como qualquer troca sob a lógica da dádiva: é tão espontânea quanto obrigatória. Após um questionamento da Alana Ribeiro, a situação tornou-se ainda mais clara. Considerando a obrigatoriedade da lógica, todo presente é um desafio. Não aceitá-lo é uma espécie de "declaração de guerra", da mesma forma que não retribuí-lo. É a recusa no estabelecimento do vínculo de amizade, de generosidade.
- Concluimos assim o equívoco de Lévi-Strauss ao afirmar que Mauss fazia uma "teoria nativa". O autor francês busca nas sociedades ditas "primitivas" os elementos que ainda persistem na sociedade em que ele está inserido. A lógica estaria apenas escondida debaixo de outra que se intentava predominar: a de valorização do capital, do material. A retribuição obrigatória persiste, somente ressignificada. Naquelas sociedades se entende que ao dar algo estou de fato dando parte de mim, de meu "espírito". Não retribuir seria, assim, uma dívida espiritual. Se não o fizer, estou amaldiçoado. "Aqui", a justificação é diferente mas a reação é análoga. Se não retribuo, sofro danos à minha reputação. Serei reconhecido como ingrato, devedor, alguém que não valoriza ou aprecia os gestos de amizade ou carinho. Percebam o quanto a tal "teoria nativa" ressoa assustadoramente nos fracos muros da contemporaneidade...
Referências Bibliográficas
MAUSS, Marcel. "Ensaio sobre a dádiva. Forma e razão da troca nas sociedades arcaicas." In: Sociologia e Antropologia. São Paulo: EPU/EDUSP. 1974.
Douglas Coutinho - Cook Multimídia
- Desta forma, Mauss busca o estudo de sociedades que ainda não possuem moeda para construir sua crítica à sociedade em que vive. E em meio a esse estudo, uma questão salta à percepção do observador francês. O que te faz retribuir o presente, a dádiva, o gesto? Foi dado mais um exemplo de Acari, que auxiliou bastante a pensar a questão. Quando um certo professor se oferece para pagar uma rodada de cervejas no bar, a turma comemora mas faz um alerta. Fulaninho de Souza, que lá estava, não tinha o costume de pagar nada pra ninguém, e jamais retribuiria o gesto. O curioso não é a gozação dos amigos, mas sim a reação de Fulaninho. Irritado e preocupado, o rapaz fazia questão de oferecer uma cerveja ao professor toda vez que o via por Acari. Preocupava-se com sua reputação, não poderia ser marcado como ingrato. A retribuição se demonstra, assim, como obrigatória, até os dias atuais. Assim como qualquer troca sob a lógica da dádiva: é tão espontânea quanto obrigatória. Após um questionamento da Alana Ribeiro, a situação tornou-se ainda mais clara. Considerando a obrigatoriedade da lógica, todo presente é um desafio. Não aceitá-lo é uma espécie de "declaração de guerra", da mesma forma que não retribuí-lo. É a recusa no estabelecimento do vínculo de amizade, de generosidade.
- Concluimos assim o equívoco de Lévi-Strauss ao afirmar que Mauss fazia uma "teoria nativa". O autor francês busca nas sociedades ditas "primitivas" os elementos que ainda persistem na sociedade em que ele está inserido. A lógica estaria apenas escondida debaixo de outra que se intentava predominar: a de valorização do capital, do material. A retribuição obrigatória persiste, somente ressignificada. Naquelas sociedades se entende que ao dar algo estou de fato dando parte de mim, de meu "espírito". Não retribuir seria, assim, uma dívida espiritual. Se não o fizer, estou amaldiçoado. "Aqui", a justificação é diferente mas a reação é análoga. Se não retribuo, sofro danos à minha reputação. Serei reconhecido como ingrato, devedor, alguém que não valoriza ou aprecia os gestos de amizade ou carinho. Percebam o quanto a tal "teoria nativa" ressoa assustadoramente nos fracos muros da contemporaneidade...
Referências Bibliográficas
MAUSS, Marcel. "Ensaio sobre a dádiva. Forma e razão da troca nas sociedades arcaicas." In: Sociologia e Antropologia. São Paulo: EPU/EDUSP. 1974.
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