Moleque atrevido
“Por isso vê lá onde pisa respeite a camisa que a gente suou
Respeite quem pôde chegar aonde a gente chegou
E quando chegar ao terreiro procure primeiro saber quem eu sou
Respeite quem pôde chegar aonde a gente chegou!”
(Jorge Aragão)
Seguindo a regra proposta por você nas redes sociais, chamá-lo-ei de Marcos, que, à moda machadiana, tornou-se não um professor defunto, mas um defunto professor; uma vez que definiu seu próprio corpo, quando presente nesta sala, como um cadáver. Eu não possuo nenhuma vocação para falar com os mortos, no entanto, devido às contingências, abro mão do meu ceticismo e me coloco à sua frente; à maneira como me chamou, no famigerado Facebook, para estar aqui.
Agora, se me permite, irei me apresentar. Meu nome é Ian Barbosa de Sarges, tenho vinte anos, nascido no Méier e criado em Campo Grande, zona oeste do Rio de Janeiro. Como estudante do ensino básico, frequentei, ao todo, três escolas públicas, dentre as quais havia uma cujo lema era “Gastão, entra burro e sai ladrão”. Hoje, eu estou aqui para reafirmar que não saí burro, nem ladrão e muito menos covarde.
À moda barretiana, estimulo um desprezo cada vez maior pelo status dos “doutores” das repúblicas brasileiras, sejam eles médicos, advogados, engenheiros ou historiadores-antropólogos que praticam o que Sidney Chalhoub chamou de ideologia da ponta do nariz, implementada pelos senhores do século XIX. E, por isso, enfrento-lhe não como um marco pessoal, ainda que este esteja inexoravelmente presente, mas por um significado amplo, que atinge também o Departamento de História da Universidade Federal Fluminense. Eu não baterei cabeça para nenhum professor deste departamento que tome atitude igual a sua, seja ele dinossauro, elefante, chefe, coordenador ou qualquer outra classificação usual.
Finalizadas minhas primeiras considerações, apresentarei os porquês da posição de repúdio ao que houve nesta sala na última quinta-feira. E, para isso, voltarei às fontes, exercício característico da nossa formação. Refiro-me, sobretudo, a uma gravação completa do áudio da aula passada, bem como as minhas presenças. Aliás, isto que farei é consuma sua própria profecia, Marcos. Num determinado momento da aula, você disse que as gravações dos nossos encontros poderiam servir para historiadores do futuro. Bem, eu sou um deles. Então, eu encaixo o meu texto na famosa modalidade de História do Tempo Presente.
À moda barretiana, estimulo um desprezo cada vez maior pelo status dos “doutores” das repúblicas brasileiras, sejam eles médicos, advogados, engenheiros ou historiadores-antropólogos que praticam o que Sidney Chalhoub chamou de ideologia da ponta do nariz, implementada pelos senhores do século XIX. E, por isso, enfrento-lhe não como um marco pessoal, ainda que este esteja inexoravelmente presente, mas por um significado amplo, que atinge também o Departamento de História da Universidade Federal Fluminense. Eu não baterei cabeça para nenhum professor deste departamento que tome atitude igual a sua, seja ele dinossauro, elefante, chefe, coordenador ou qualquer outra classificação usual.
Finalizadas minhas primeiras considerações, apresentarei os porquês da posição de repúdio ao que houve nesta sala na última quinta-feira. E, para isso, voltarei às fontes, exercício característico da nossa formação. Refiro-me, sobretudo, a uma gravação completa do áudio da aula passada, bem como as minhas presenças. Aliás, isto que farei é consuma sua própria profecia, Marcos. Num determinado momento da aula, você disse que as gravações dos nossos encontros poderiam servir para historiadores do futuro. Bem, eu sou um deles. Então, eu encaixo o meu texto na famosa modalidade de História do Tempo Presente.
Após tal arbitrariedade, enfim, logrou em ler seus textos provocativos, sendo que num deles, atacou “as patrulheiras do politicamente correto”, revelando assim o motivo de tanta fúria. Quem sabe por uma tendência à hipérbole da literatura, descreveu a postagem no Facebook como uma APUNHALADA PELAS COSTAS, a qual foi desferida NA CALADA DA NOITE. No meu tempo, de manhã era dia e apunhalada pelas costas pressupunha uma tentativa de disfarçar o golpe para que outro não saiba. Mas a discussão deu-se de forma pública e com marcação direta de sua conta.
Com a hipérbole e ego afiados, continuou sua arenga. Ilusoriamente, descreveu-se como inimigo-mor e injustiçado frente aos carrascos infindáveis. Respaldado pela historiografia, sinto lhe informar que os heróis são construções sociais que possuem a importância e ação limitadas pelos condicionamentos do contexto, como qualquer outro ator social. Na verdade, é a memória, a qual é afetiva e seletiva, que os colocam em posições acima daquelas que realmente ocupam.
A luta por universidade melhor é absolutamente maior que você, mesmo se levarmos em conta somente a UFF. O movimento estudantil é uma característica das universidades públicas e, como deve saber, goza de tamanha importância que foi e é objeto de estudos por parte dos campos das humanidades. Para citar um dos últimos grandes exemplos nesta universidade, em dois mil e onze, os estudantes da UFF ocuparam a reitoria, exigindo e questionando a cadeia de comando universitária.
A luta dessas meninas contra a ditadura do cabelo liso não é traduzida na frase “não tem que mudar a porra do cabelinho só”. Todo cientista social deveria saber da importância do cabelo na identidade da mulher. Tal como os depoimentos, carregados de sentimentos, mostraram nesta mesma sala. Portanto, apenas aqueles que foram não só teoricamente ingênuos, mas igualmente insensíveis, não captaram a mensagem.
Em termos de dimensão, os problemas de uma faculdade é um ponto no mar, enquanto a luta contra o racismo é o próprio mar. É um fato social, isto é, penetra todos os espaços da sociedade, ao contrário do alcance das universidades públicas, as quais ainda não abriram as portas para aqueles que deveriam ocupá-la. Minhas possíveis dores em trinta anos de trabalho, ganhando um salário muito acima da média dos brasileiros, talvez seja menor do que o sofrimento de uma mulher ao ver seu cabelo cair depois da utilização de tanta química.
As denominações “pele morta” e/ou cabelo politicamente correto, não refletem a complexidade do que está em jogo. Por exemplo, segundo um professor defunto, baseado em Geertz, os cabelos dreadlocks são símbolos que podem ser lidos. Eles nos passam uma mensagem de afirmação e intimidação, exaltando a identidade negra. Será que o professor defunto denominaria isto de politicamente correto?
Bem, eu duvido muito, pois essa postura das meninas, bem como a preocupação com a grafia das palavras – como, por exemplo, alunxs -, corrobora para comprovar a importância da cultura – a qual é tão relevante ou real quanto às faces econômicas e materiais da sociedade; e tão espaço de luta quanto às arenas reconhecidas. Tais ações são - pelo que eu entendi do trecho sobre Chartier - apropriações dotadas de estratégias discursivas, que por sua vez engendram uma representação, no sentido de “exibição de uma presença, como apresentação pública de algo ou alguém”. Assim, como o que houve nesta sala, a luta e o conflito nascem, posto que a leitura dos símbolos não é unívoca, revelando as relações de poder e a importância de saber a posição de quem discursa.
Repudio, de igual modo, a incompreensão da tessitura social desta geração. Nós não deixamos de sermos seres humanos porque utilizamos uma ferramenta tecnológica para promover debates e discussões. As arenas de conflitos, sejam elas “virtuais” ou “reais” – deixando claro que não concordo com essa oposição -, são permeadas de ataques passionais, os quais não acrescentam ao debate, mas podem igualmente serem constituídas de valor intelectual. Como historiadores, dificilmente, engolimos a existência do inerente. Acreditamos mais nas possibilidades. Talvez, cremos mais na inerência das possibilidades. Nesse sentido, a internet poderá servir para fins cruéis, como a invasão de privacidade, a calúnia e a difamação, mas também para fins democráticos: as denúncias de interesse público e, tendo como consequência, a mobilização das pessoas, o que provoca, no fim, a democratização da informação.
Tendo isso em vista, defendo o direito dos alunos levantarem debates em sala de aula ou em fóruns nas redes sociais, principalmente se as questões suscitadas originaram-se de um espaço público, seja ele o da universidade ou não. Quatro horas na semana não contemplam todos os argumentos, visões e perspectivas. Em contraponto, é claro, tais ampliações das possibilidades precisam vir carregadas de códigos que garantam o direito à resposta, o respeito e o conhecimento dos envolvidos, tal qual ocorreu no nosso caso.
Encaminhava-me para a conclusão, mas lembrei-me de outro problema que vale ser levantado. Há trinta anos, qual era o perfil dos alunos que ocupavam esta universidade? Hoje, quem são eles? Não tenho os números, mas arrisco dizer que existe um contingente atualmente para o qual não era possível cogitar a entrada numa universidade pública. E o meu coloco entre eles. Entre a minha família, eu sou o único, em várias gerações, que conseguiu entrar numa universidade pública. Eu não sou da Zona Sul e nem de Icaraí. Será que a esse contingente pode ser exigida a postura de recusa de bolsas que universidade oferece? Não é questão de culhão, é questão de sobrevivência, como aquele sujeito que não aceitou usar camisinha mesmo sabendo que poderia contrair o vírus do HIV. Mas, mesmo aqueles que possuem base para negar qualquer bolsa da faculdade ou das agências de fomento, eu desafio - inspirado em Jesus Cristo, pois “o cristianismo é foda”: Atire a primeira pedra quem fez mestrado, doutorado e pós-doutorado. sem qualquer tipo de bolsa.
Precisamos estar conscientes das posições em que cada pessoa se encontra, a fim de que não ousemos cobrar desafios impraticáveis. Principalmente quando já não tivermos mais nada a perder, enquanto o outro ainda não chegou nem ao nível de perder algo, uma vez que, há pouco, iniciou sua caminhada.
Para finalizar, farei o exercício da reconsideração junto com o da manutenção. Primeiramente, retiro a frase em que lhe chamei de frustrado. Fiz isso num momento no qual tentei encontrar agressões que o atingissem. Quem sabe, você até seja um frustrado, mas um frustrado igual aos grandes homens que sacrificaram uma carreira para incomodar aqueles que batem cabeça para o sistema universitário. Todos nós de certa forma nos curvamos por conta dos condicionamentos, no entanto, isso não quer dizer que não lutamos contra. Por outro lado, baseado em tudo que escrevi, faço uma manutenção ou reafirmação contrária a sua postura na última aula, louvando, ao mesmo tempo, o pedido de desculpas à turma – o qual eu vi agora nas redes sociais, depois de ter produzido mais de três quartos deste texto.
De: Ian Barbosa de Sarges
Para: Marcos Alvito
Bem, eu duvido muito, pois essa postura das meninas, bem como a preocupação com a grafia das palavras – como, por exemplo, alunxs -, corrobora para comprovar a importância da cultura – a qual é tão relevante ou real quanto às faces econômicas e materiais da sociedade; e tão espaço de luta quanto às arenas reconhecidas. Tais ações são - pelo que eu entendi do trecho sobre Chartier - apropriações dotadas de estratégias discursivas, que por sua vez engendram uma representação, no sentido de “exibição de uma presença, como apresentação pública de algo ou alguém”. Assim, como o que houve nesta sala, a luta e o conflito nascem, posto que a leitura dos símbolos não é unívoca, revelando as relações de poder e a importância de saber a posição de quem discursa.
Repudio, de igual modo, a incompreensão da tessitura social desta geração. Nós não deixamos de sermos seres humanos porque utilizamos uma ferramenta tecnológica para promover debates e discussões. As arenas de conflitos, sejam elas “virtuais” ou “reais” – deixando claro que não concordo com essa oposição -, são permeadas de ataques passionais, os quais não acrescentam ao debate, mas podem igualmente serem constituídas de valor intelectual. Como historiadores, dificilmente, engolimos a existência do inerente. Acreditamos mais nas possibilidades. Talvez, cremos mais na inerência das possibilidades. Nesse sentido, a internet poderá servir para fins cruéis, como a invasão de privacidade, a calúnia e a difamação, mas também para fins democráticos: as denúncias de interesse público e, tendo como consequência, a mobilização das pessoas, o que provoca, no fim, a democratização da informação.
Tendo isso em vista, defendo o direito dos alunos levantarem debates em sala de aula ou em fóruns nas redes sociais, principalmente se as questões suscitadas originaram-se de um espaço público, seja ele o da universidade ou não. Quatro horas na semana não contemplam todos os argumentos, visões e perspectivas. Em contraponto, é claro, tais ampliações das possibilidades precisam vir carregadas de códigos que garantam o direito à resposta, o respeito e o conhecimento dos envolvidos, tal qual ocorreu no nosso caso.
Encaminhava-me para a conclusão, mas lembrei-me de outro problema que vale ser levantado. Há trinta anos, qual era o perfil dos alunos que ocupavam esta universidade? Hoje, quem são eles? Não tenho os números, mas arrisco dizer que existe um contingente atualmente para o qual não era possível cogitar a entrada numa universidade pública. E o meu coloco entre eles. Entre a minha família, eu sou o único, em várias gerações, que conseguiu entrar numa universidade pública. Eu não sou da Zona Sul e nem de Icaraí. Será que a esse contingente pode ser exigida a postura de recusa de bolsas que universidade oferece? Não é questão de culhão, é questão de sobrevivência, como aquele sujeito que não aceitou usar camisinha mesmo sabendo que poderia contrair o vírus do HIV. Mas, mesmo aqueles que possuem base para negar qualquer bolsa da faculdade ou das agências de fomento, eu desafio - inspirado em Jesus Cristo, pois “o cristianismo é foda”: Atire a primeira pedra quem fez mestrado, doutorado e pós-doutorado. sem qualquer tipo de bolsa.
Precisamos estar conscientes das posições em que cada pessoa se encontra, a fim de que não ousemos cobrar desafios impraticáveis. Principalmente quando já não tivermos mais nada a perder, enquanto o outro ainda não chegou nem ao nível de perder algo, uma vez que, há pouco, iniciou sua caminhada.
Para finalizar, farei o exercício da reconsideração junto com o da manutenção. Primeiramente, retiro a frase em que lhe chamei de frustrado. Fiz isso num momento no qual tentei encontrar agressões que o atingissem. Quem sabe, você até seja um frustrado, mas um frustrado igual aos grandes homens que sacrificaram uma carreira para incomodar aqueles que batem cabeça para o sistema universitário. Todos nós de certa forma nos curvamos por conta dos condicionamentos, no entanto, isso não quer dizer que não lutamos contra. Por outro lado, baseado em tudo que escrevi, faço uma manutenção ou reafirmação contrária a sua postura na última aula, louvando, ao mesmo tempo, o pedido de desculpas à turma – o qual eu vi agora nas redes sociais, depois de ter produzido mais de três quartos deste texto.
De: Ian Barbosa de Sarges
Para: Marcos Alvito